Por: Manuel de Sousa
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A literatura portuguesa ficou, não direi mais pobre, mas mais triste pela perda de José Saramago, uma personalidade de grande relevo e importância na escrita, independentemente das polémicas e das controvérsias das suas posições. Partiu 12h 30m, do dia 17 de Junho de 2010, com 87 anos de vida, devido a uma múltipla falha orgânica, após doença prolongada, na companhia dos mais próximos. Consta-se que partiu de forma serena e tranquila, talvez com a sensação de trabalho feito durante esta sua vida que sempre julgou apenas como sendo terrena e sem qualquer continuação para lá da morte.
De José Saramago já muito se falou nestes dias e a notícia da sua morte correu de forma rápida e da mesma forma se fizeram imensos comentários um pouco por todas as formas de comunicação. Como sempre, muitas opiniões a lamentar a sua morte como uma perda para a literatura e para o mundo da cultura e outras em tom de crítica quanto à sua personagem, pertinência a suar a uma certa arrogância, opiniões que roçam o político e o religioso, faces da vida que sempre marcaram Saramago ao longo de uma vida conturbada. Atrevo-me a dizer que uma vida bastante rica e com uma inteligência invulgar.
O HOMEM
No dia das cerimónias fúnebres de Saramago, muitos, entre personalidades e anónimos lembraram a pessoa que era o José e a sua simplicidade, contrária ao que muitos de nós se habituaram ou nos construíram pelas suas reacções, por vezes ácidas, com que comentava os temas ou as questões que lhe propunham. Sem dúvida que para muitos foi criada a imagem de um homem frio e distante de todos e dos seus. Porém, as pessoas com quem privara têm uma noção e uma visão bem diferente da pessoa. Nos seus discursos públicos José Saramago costumava lembrar as suas humildes origens Ribatejanas e a sabedoria de seu avô Jerónimo, que na altura de Verão dormia com o seu neto debaixo da figueira depois de divagar sobre as suas histórias de vida. Saramago aprendeu com esta sabedoria e quiçá será um reflexo da vida de seu avô e da sua avó não menos sábia, como dizia.
Independentemente de todas as tomadas de posições, criticas e azedumes, crê-se que era um homem de fortes convicções em quem se podia confiar pela sua fidelidade aos amigos e aos valores. Um exemplo de integridade para o mundo actual, mesmo que isso lhe trouxesse dissabores. No discurso da Real Academia Sueca, por altura do Nobel que recebeu em 1998, a certa altura disse: «A biologia não determina tudo e, quanto à genética, muito misteriosos deverão ter sido os seus caminhos para terem dado uma volta tão larga (?) Ao pintar os meus pais e os meus avós com tintas de literatura, transformando-os, de simples pessoas de carne e osso que haviam sido, em personagens novamente e de outro modo construtoras de minha vida (?) a implantar no homem que fui as personagens que criei. Creio que, sem elas, não seria a pessoa que hoje sou». Estas pequenas palavras transcritas do seu discurso resumem parte da essência deste homem, José Saramago.
O ESCRITOR
A sua carreira sem dúvida que ganhou uma grande projecção quando foi galardoado com o prémio Nobel da Academia Sueca, em 1998, quando completava 76 anos de idade. Este era um prémio há muito aguardado pelas várias vezes em que o seu nome foi apontado para ser eleito. Porém, a sua obra com ou sem grande prémio de referência internacional, continuou a ter a mesma qualidade de sempre e com o mesmo gosto e a mesma acutilância que todos esperam quando compra um livro seu.
A forma de escrita deste senhor da literatura foi sem dúvida revolucionária e nem sempre bem aceite pelo nosso público, que construiu uma imagem em torno de uma pessoa com uma escrita considerada incompreensível. Reinventou uma forma de escrever, que podem chamar de barroca, mas que não perde qualquer sentido quando lido com o sentido que o autor entende ser dado. A inteligência de Saramago não era apenas a pensar nas histórias que editara, era também sua intenção escrever de uma certa forma, para que a leitura tivesse a posição que este defendia e considerava importante ter. Uma forma indirecta de partir para o convencimento de forma lógica e breve. A pontuação criticada por muitas vozes como sendo obscena e sem qualquer rigor linguístico, provoca exactamente o contrário, ou seja, fazem o leitor deambular ao longo das páginas com uma rapidez tal, de forma a não sentir qualquer maçada na leitura, mas prazer.
As crónicas, contos, diários, ensaios, memórias, poesias e romances fazem da obra de José Saramago algo de uma riqueza impressionante, que estará sempre viva no futuro porque é ao futuro que se dirigem as suas palavras. Saramago escreveu para o hoje e muito para o amanhã, o que marcou a diferença de grandes homens da literatura portuguesa que escreveram para o passado e para o presente e que por muito rica se sejam suas obras, nem sempre se poderão projectar no futuro contemporâneo. A acutilante escrita procurou desassossegar as mentalidades mais adormecidas e procurou remexer as teorias que perduraram na História durante séculos. A sua escrita procurou remexer com as instituições e aquilo que o mundo tenta manter como estático e imóvel para o acomodar das consciências. Escreveu sobre um povo português que sempre amou mesmo após vários azedumes. Foi um homem que através da escrita tentou dar luz ao sonho. Deu, com certeza, luz ao sonho de muitos.
A toda esta sensibilidade e capacidade lhe valeram os prémios de uma carreira como Grande Prémio do Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores, o Prémio Camões, para além do Prémio Nobel da Literatura, a 1998. Um autor internacional, traduzido em muitas línguas, tantas quantas as que quiseram conhecer a sua obra de dignidade para a Língua Portuguesa.
O POLÍTICO
Conhecido homem de esquerda, José Saramago foi militante do Partido Comunista desde 1969, nos tempos da clandestinidade e na preparação para a aurora de Abril. Foi por Abril que este ser lutou porque sempre sonhou com a liberdade do povo português. Comunista, o ideal marcado nos seu código genético, que assegura nunca ser possível libertar mesmo que fosse essa a sua intenção. Porém, nem sempre concordou com posições do partido e de Álvaro Cunhal, mas tinha a frontalidade de o afirmar a quem de direito como forma de respeito para com os outros e como sinal de lealdade para com o partido e para com a sua consciência. Apesar dos prémios e da fama que lhe foi sendo marcada com a passagem do tempo, nunca abandonou as suas convicções. Foi político autárquico por Lisboa e mesmo para o Parlamento Europeu em lugar não elegível. Muito criticado pela defesa de uma aproximação a Espanha e defensor de uma posição de um país ibérico.
Mas, apesar de tudo nunca deixou o seu patriotismo português e teve a frontalidade de o dizer publicamente quando recebeu o prémio Nobel como sendo também um prémio para os portugueses. Não negou as suas origens e como tal, uma defesa do seu patriotismo. Partiu para Espanha, para Lanzarote, mas permanentemente vinha a Portugal onde possuía residência e a quem pagava os seus impostos. A sua ida para Espanha foi uma decisão pelo que o Governo Português, na pessoa de subsecretário de estado do Ministério da Cultura, António Sousa Lara, em 1992, tomou quando decidiu riscar a obra O Evangelho Segundo Jesus Cristo, da lista de livros concorrentes ao Prémio Literário Europeu. Uma acção de censura, por considerar que este foi um acto contra o património cultural e religioso de Portugal. O Governo de Cavaco Silva não o considerava quiçá bem-vindo.
Talvez este reflexo seja a justificação para o Chefe de Estado português, Cavaco Silva, não se encontrar presente nas cerimónias fúnebres. Uma falta de sensibilidade, cortesia, uma falha que não se preenche com um representante da casa civil. José Saramago foi bem claro quando disse que agradecia o que os portugueses fizeram por ele e que não guardava, por isso, qualquer ressentimento.
O RELIGIOSO
São do conhecimento de todos as críticas e ataques que José Saramago dirigiu contra Deus e contra a religião, nas suas obras e mesmo nas suas intervenções públicas. As últimas e mais ferozes terão sido na altura a publicação do Caim, em Outubro de 2009, quando classificou como Deus da Bíblia um ser monstruoso e o Livro Sagrado como um livro de maus costumes e que deveria ser afastado da leitura dos jovens, por existir sangue, ódio e incestos. A Igreja Católica apesar de lamentar a sua morte, não deixa de lado as críticas de que foi alvo por Saramago, das suas influências anti-religião e marxistas, que utilizou para granjear prémios e popularidade.
A verdadeira intenção do escritor era o levantamento de questões religiosas, nem sempre bem esclarecidas e que mereciam uma análise. Para Saramago, acreditar sem questionar não faria qualquer sentido e essa foi a sua intenção, independentemente de alterar ou não a fé de cada um.
Apesar de não acreditar em Deus, não deixa de mostrar, na sua obra, a preocupação em relação a Ele e à possibilidade de este existir quando tem a pertinência de o questionar em relação ao que vê com os seus olhos no mundo actual. A sua constante negação não põe de lado a defesa da sua mentalidade que no fundo é Cristã e os seus valores estão enraizados e recheados de Cristianismo e foi essa cultura e mentalidade que o perseguiu durante a sua vida. Preocupava-se muito com Deus porque dizia que Ele está na cabeça de cada um.
Sem dúvida um sentimento religioso que o preocupava e que pretendia desacreditar, levantando inúmeras questões com o objectivo de não existirem repostas válidas ao que é difícil explicar.
Muito mais haveria a falar da riqueza da vida de José Saramago, mas todas as palavras serão muito poucas, comparadas com as palavras escritas por si e que tivemos o prazer de ler e partilhar.
Para o Homem que dizia que morrer é simplesmente natural, a natureza cumpre assim o seu papel de levar um homem que deu muito a muitos, mas que nunca se perderá na memória. Isso temos a certeza, de ser imortal, num mundo de coisas que nascem e morrem.