Por: Manuel de Sousa




PARTE I




Deus é um louco. Se não é então atingiu-lhe um estado de loucura tal, que lhe tirou por completo a noção da realidade dos acontecimentos do mundo. A sua obra de criação parece mais que uma experimentação do Homem e a cada vez que lhe foge aos seus desígnios tem de ser castigado e exterminado da face da terra, assim como, todas as coisas ou seres fruto desse Homem errante. Deus não está contente com a obra da criação e então cria remendos atrás de remendos na mesma História como forma de tentar fazer algo perfeito que não consegue. Mas se não consegue, estamos perante um Deus e nada consegue? Estaremos perante um Deus frustrado que não se contentado com nada tudo destrói para regozijo próprio? Existirá um Deus que de princípios entenderá muito pouco até menos que um simples mortal como nós somos?




Muitas questões poderemos levantar sobre Deus e as suas acções após a leitura de «Caim», da autoria de José Saramago. Esta é sem dúvida uma hilariante história que nos conduz de forma rápida e directa através do tempo, em avanços e recuos ao longo da História do Antigo Testamento. Uma grande história com muitas histórias pelo meio que procuram provocar as consciências crentes e quiçá acorda-las para uma verdade dura que há muito deveriam ter acordado com questões deveras pertinentes, que merecem a sua discussão e atenção.




Já tive a oportunidade de comentar as afirmações do autor numa das suas polémicas declarações sobre Deus, o Deus da Bíblia, como forma de críticar a religião pela sua pregação. Mas, uma coisa será a crítica a meras declarações, que poderiam ser meramente publicitárias, outra será tecer uma opinião e uma apreciação crítica depois de conhecida a obra e de uma leitura integral, não muito difícil pela rapidez com que se faz, embora careça de algumas paragens para reflexão sobre o que vai sendo lido.




A acreditar piamente no que foi sendo escrito pelo autor, sem outra análise crítica cuidada, tudo nos levaria à brilhante conclusão que Deus é um louco e que nos gosta de testar a cada passo e que até gosta de fazer umas apostas com Satã; quiçá para quebrar uma certa rotina que se vai vivendo no Paraíso, quando a obra da criação está feita na totalidade e carece apenas de uma manutenção mecânica, para que tudo funcione na perfeição. Porém, nem tudo é assim tão linear, quanto a isso merece uma reflexão cuidada a cada um dos episódios. Estamos perante uma obra de ficção, baseada em factos descritos na Bíblia, mas contados à maneira mais conveniente do autor e com pormenores que o mesmo inventa para dirigir a história no sentido que deseja. Escapam pormenores que por vezes podem alterar o sentido de cada uma das passagens. No entanto, quanto a isso torna-se interessante e acutilante para uma boa reflexão e discussão de ideias, dogmas e princípios.
Procura mexer com convicções ao questionar a razão dos factos e ao tentar fazer raciocínios conclusivos como forma de vincar as suas posições. Se bem que a própria pontuação utilizada pelo autor pode fazer a sua diferença e suscitar ainda mais o interesse, mais interrogação e mais discussão.




Sabemos bem, e para quem já leu a Bíblia ou parte dela, esta é fruto de um conjunto de livros, da recolha e da pesquisa entre muitos autores, que sob a inspiração divina escreveram histórias, lendas, mitos, reflexões, visões, projecções e história científica. Muitas delas foram passando de geração em geração durante séculos até serem escritas pela primeira vez. Existem episódios belos e bélicos, relatos verídicos e outros que jamais aconteceram, histórias proféticas que só a fé pode explicar ou validar. Por muitas investigações históricas que possam ser efectuadas muitos acontecimentos puderam ser provados e confirmados, assim como, outros ficarão ao critério de cada um.




O primeiro episódio do livro começa com o jardim do Éden em que Deus terá lá colocado uma árvore com um fruto proibido, que muitas vezes terá sido interpretado como o pecado do sexo. Deus terá proibido que comecem daquele fruto e ficou terrivelmente zangado com a desobediência do homem e da mulher. Quem lá mandou colocar essa árvore? - Questiona o autor. No mundo foi criada muita coisa boa e muita coisa má, na sua maioria por invenção do Homem. A colocação de uma árvore será mais uma figuração de que Deus deixou que tudo ficasse ao nosso critério e que nos deixou livres de optar pelo bem ou pelo mal porque se assim não fosse estaria a negar-se a si próprio. O pecado do fruto proibido é nada mais nada menos que a desobediência às regras estabelecidas.
O conceito de liberdade é por isso muito relativo e sabemos o quanto é relativo para o Homem pronto a infringir regras.




Caim, ao longo do livro culpará sempre Deus por este nunca ter aceitado as suas oferendas e ter aceitado apenas as do seu irmão Abel. Deus disse que o estava a pôr à prova e, por essa razão, Caim matou Abel, afinal Abel estava sempre a gozar com o irmão. Caim questiona porque é que Deus o pôs à prova sendo Ele o Criador. Não saberá Deus o que criou? Será um criador inconsequente? Talvez Caim não tenha entendido que Deus deu a liberdade ao Homem e a Caim para fazerem o que quiser. Esta liberdade não entende Caim, da mesma forma que sente o direito da mesma liberdade. Disse que Deus poderia evitar a morte de Abel, quando se contradiz que Deus não tem o direito de contrariar a sua liberdade de acção.
Com estas sucessivas contradições fica a questão para todos nós: Deus deverá deixar o Homem livre sobre a Terra, mesmo que essa liberdade permita que se cometam actos tão terríveis?
Se não nos deixa livres, esse Deus nega-se a si mesmo. Esta questão faz-me lembrar a frontalidade de Bento XVI num campo de concentração em Auschwitz, na Polónia, quando questionou «Onde estava Deus?» que permitiu que actos tão bárbaros se cometessem. A questão de liberdade de acção, ainda que contra o acto de criação, deixa muito em aberto à nossa liberdade de pensar.
Quantos dos actos bárbaros são cometidos como se Deus fosse o culpado dos mesmos e como forma de justificação das próprias acções e na impossibilidade da morte de Deus matam aqueles que por questões de fé nele acreditam.




No episódio de Abraão que sobe ao alto do monte com o seu filho Isaac que carrega um monte de lenha é nada mais que um episódio de provação. Não se sabe se tal terá acontecido realmente. Mas quer este servir como teste a Abraão e saber se este teria alguma coragem de sacrificar o seu filho à morte em nome de Deus. Nas escrituras este episódio é descrito de forma diferente porque quando Abraão se preparava para o sacrifício do filho, o Senhor deteve-o para que não fosse derramado sangue inocente e que a prova já estava mais que dada. No livro de José Saramago, Isaac só não morreu porque Caim o impediu, dado que o anjo do Senhor teve uma avaria mecânica numa das asas quando vinha ao encontro de Abraão para que este não matasse o seu filho. Esta parte entre o descrito na Bíblia e o inventado pelo autor teve nada mais, nada menos como intenção de provocar discussão entre as personagens e deixar uma vez mais a ideia de um Deus que pede um sacrifício como quem pede um copo de água. Um Deus mau que Caim conseguiu conter.
Este episódio representa para Abraão, o pai das três grandes religiões monoteístas. Representa o como linguagem simbólica a confiança que Deus depositou neste Homem. Não estamos perante um anjo que chegou atrasado e que teve uma avaria numa asa.
Mais uma vez a questão de um Deus louco? Cruel? Do ponto de vista de José Saramago sim, do ponto de vista de um crente não. Afinal o inocente não foi sacrificado como José Saramago tenta dizer que sim, só foi evitado por Caim.




PARTE II




A Torre da Babilónia construída com o intuito de chegar ao Céu e que terá sido destruída por Deus que não gostou dela, nada mais será que uma possível figuração de que nem sempre Deus gostará de algumas grandezas do Homem, quando são feitas como forma de se comparar na grandeza. Não é uma questão de proibição de grandes construções, caso contrário actualmente não existiriam as grandes construções, com dimensões anteriormente impensáveis. Grandezas cheias de defeitos e sem quaisquer conteúdos tornam-se balofas, condenáveis e de curta duração. Grandezas sem valores e sem princípios. Sabemos quanto existem destas grandezas e que quanto mais se constroem maior é a destruição.
O episódio de Sodoma e Gomorra é apenas uma explicação que na altura não existia para determinados fenómenos naturais, naquele caso de origem vulcânica. É claro que não existindo explicação para os factos, os mesmos seriam associados a males dos quais padeciam as populações e encarados como uma vingança e uma revolta de Deus. Um episódio que revela um exagero da ira divina, quando na altura o Senhor era entendido como algo mais temível, mas nem por isso como injusto, se bem que, o justo e o injusto possa ser entendido de uma forma relativa aos olhos de cada um.
A mulher de Lot morreu transformada em estátua de sal porque olhou para trás, enquanto fugia da cidade e da destruição que estava a ocorrer. O Senhor tinha dito para que ao fugir não olhasse para trás. A reflexão posta por Saramago é interessante porque não entende a razão desta mulher ter sido castigada quando todos temos a curiosidade de olharmos para o que acontece nas nossas costas. Queria Deus punir a curiosidade do Homem? Esta passagem e questão de Saramago leva-me a pensar nas inúmeras situações da vida a curiosidade é de tal forma mortal quando se é aconselhado a seguir em frente. É traiçoeira e muitas vezes má conselheira e por isso, podemos entender às situações práticas e situações sentimentais. Estamos perante mais um episódio figurado e que terá muito a dizer sobre as tendências do Homem. Não foi Deus que castigou a mulher de Lot porque a deixou fugir, foi ela que se condenou a si própria quando perdeu o seu tempo a olhar para trás. Todos somos livres das nossas acções, Temos é que ter a noção das consequências boas e más que daí podem surgir.




O episódio da ida de Moisés ao monte Sinai e a sua descida em que se depara com um bezerro de ouro porque o povo já não acreditava no Senhor e tiveram a necessidade de criar um novo Deus para adorarem e obter atenção, revela de facto um episódio de grande violência ainda frequente nos dias de hoje. Moisés ordena a morte, faz derramar sangue entre milhares de pessoas. A Bíblia é tão real quanto isto. Existem episódios de sangue porque foi com sangue que grande parte da História da Humanidade foi construída. Não seria justo negar essa História, esse sangue e que tudo caísse no esquecimento. Em nome de Deus muitos morreram porque acreditavam noutros deuses. Guerras entre religiões e fés foi a razão da morte e sacrifícios de muitos. Por Deus se louvou e se matou. Toda esta loucura e desespero do Homem criou a falsa ideia de que Deus é um louco.




   PARTE III




O encesto de Lot, embebedado pelas suas filhas, que engravidaram de seu pai porque estas pretendiam deixar descendência da família, é para José Saramago um pecado. Como pode Deus permitir tal pecado? O encesto aqui descrito e explicado é mais um episódio que não pode ser entendido de forma literal. Pelos estudos efectuados, as personagens deste episódio não serão propriamente pessoas, mas povos. Cada uma das personagem representava um povo que na suposta necessidade de linhagem ou por outras razões se cruzou geneticamente.




A loucura de Deus continuou ao longo de toda a história bíblica e Caim caminhou pelo caminho dos errantes por toda essa história e nela apenas presenciou a desgraças, mortes e injustiças contra pessoas inocentes. Imagine-se quanto se deve ter cansado este homem ao longo de toda a história de tanta desgraça e de não ver em Deus uma única boa acção e uma única atitude correcta. No meio de tudo isto parecia ser o maior inocente, afinal apenas matara seu irmão, comparado com todas as restantes desgraças. Veja-se a matança na invasão de Jericó e as pragas sobre ela rogadas. Matança ordenada por Josué, homem devoto de Deus e que por Ele se sentiu iluminado. Quantos infamemente praticaram a maldade em nome de Deus? É por isso que Deus é um louco, extremamente louco se em todos os actos atendermos apenas à inocência humana.




As lamentações de Job por toda a desgraça que sofreu, por ter perdido os bois, os jumentos, roubados pelos assaltantes; ovelhas e escravos queimados por um raio; os caldeus roubaram os camelos e mataram os criados; os filhos levados por um furacão; são no entender do autor fruto de uma aposta entre Satã e Deus, em que Deus apostava que Job se manteria fiel a Si por maiores que fossem as desgraças. Todas as desgraças fruto do diabo que arranjou poderes fantásticos para a grande desgraça. Tudo isto terá ocorrido numa Assembleia no Céu onde participava Deus, o diabo e os anjos.
É claro que muitos dos pormenores desta passagem não se encontra escrita na Bíblia, mas representam a capacidade criativa do autor. Segundo a Bíblia, Job terá de facto sofrido muitas provações não se sabe vindas de onde. Porém, pela sua persistência Deus terá premiado este homem retribuindo-lhe tudo o que tinha perdido ou mais ainda.
O significado deste episódio é nada mais que uma forma de demonstrar que Deus nos pode restituir em muito se a nossa fé for sólida e inabalável. Que nos poderá retribuir em dobro. É claro que para essa ajuda não será necessário provocar e viver em tanta desgraça, se bem que uma desgraça nunca vem só. Muitas vezes somo nós que atribuímos desgraça a tudo o que acontece. Mas aqui é a prova que a dedicação e a força, a coragem nos permite recuperar muito do que se perde e que Deus estará disposto a dar o seu contributo positivo. Não estamos perante uma qualquer Assembleia nos Céus e muito menos de uma aposta de Satã com Deus.




O livro termina que a passagem da Arca de Noé. Noé lá construiu a grande barca em terra, quando os barcos se construem junto à água (reparo do autor) para guardar um exemplar um exemplo masculino e feminino de cada espécie, para que sob o mundo caísse um dilúvio e quando terminado dilúvio uma nova Era teria início e antes que grande parte da Humanidade se perdesse para sempre, era tempo de construir uma nova. Mas, Caim interfere na jogada de Deus e mata cada um dos habitantes da Arca para vingança contra Deus, que ficaria num beco sem saída para dar inicio a uma nova Era. Não haveria Humanidade e quando o Senhor apareceu Caim obrigou Deus a colocar-se sobre a própria face de destruidor e assassino. Assim ficaram até aos dias de hoje na eterna discussão dos acontecimentos que se foram sucedendo ao longo da História da Bíblia.




É claro que muitos dos episódios tiveram a parte da transcrição literal da Bíblia e a criação de José Saramago para se tornarem mais acutilantes e muitos deles interpretados de uma forma errada. Porém, há um fundo de verdade nas suas palavras porque muitas guerras e muitas mortes existiram em nome de Deus erradamente. Talvez ainda hoje muita coisa má aconteça em nome de Deus.
Nota-se que durante a história do livro «Caim» não existam muitos episódios, sem dúvida memoráveis e que se destacam pela positiva na Bíblia. José Saramago reduziu a Bíblia a algo minúsculo, insignificante e aterrador. Embora, se tudo tivesse corrido tão bem, certamente que não ser justificaria a vinda de um Messias para repor a ordem no pensamento, nas acções e nas leis de então, que se encontravam entendidas de forma errada.




  




manuelsous@sapo.pt